Ciclone Ana em Moçambique: como a cobertura midiática sobre África se limita aos estereótipos
Texto: Fernanda Rosário | Edição: Nadine Nascimento
Originalmente publicado no Alma Preta Jornalismo Preto e Livre
As tempestades provocadas pelo fenômeno climático causaram mortes e destruição em sua passagem por Madagascar, Moçambique, Malawi e Zimbabué; especialistas apontam as lacunas na cobertura de África: “a mídia brasileira não tem um olhar sobre a África, não tem correspondente no continente africano”
Desde o dia 22 de janeiro, países da África Austral, região sul do continente africano, têm enfrentado às consequências do ciclone Ana, que causou um rastro de destruição em sua passagem por Madagascar, Moçambique e Malawi, dirigindo-se até o Zimbabué. Segundo especialistas, os países da África ainda não recebem uma boa cobertura midiática de seus acontecimentos.
Um balanço ainda não finalizado de mortes indica que foram, pelo menos, 20 mortos em Moçambique, 48 mortos em Madagascar e 20 óbitos em Malawi, mas o número pode aumentar já que há dezenas de desaparecidos.
Segundo o moçambicano Pedro Gaspar Manjate, jurista e trabalhador do Setor de Águas do Ministério das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos do Governo de Moçambique, em seu país, as chuvas fortes do ciclone duraram cerca de quatro dias e afetaram principalmente o norte e o centro da região.
“Em Moçambique, o ciclone foi mais severo na Província de Tete, no Bairro de Chingodzi, que é o mais populoso da cidade. Os principais rios do centro e norte do país aumentaram de forma exagerada os seus caudais, com os respectivos leitos super inundados e com correntes fortes de destruição de tudo o que apareceu pela frente”, destaca o jurista.
De acordo com informações do site Vatican News, coletadas com bispos moçambicanos na região, o norte de Moçambique foi uma área duramente atingida e é onde vivem centenas de milhares de pessoas em acampamentos improvisados e deslocados por conta de insurgências e guerras, como na província de Cabo Delgado.
A Cruz Vermelha calcula quase 16 mil pessoas no sul do Malawi afetadas pelo ciclone e, de acordo com informações da ONU, estima-se que mais de 45 mil pessoas, incluindo 23 mil mulheres e crianças, precisem de auxílio humanitário nas províncias de Nampula, Zambézia, Tete, Niassa, Sofala e Manica, em Moçambique.
“O governo através das suas instituições do Estado, tais como: INGD (Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres) e GREPOC (Gabinete de Reconstrução Pós-Ciclones), bem como entidades de caridade Cruz Vermelha, ONG’s, parceiros públicos e privados nacionais e internacionais estão a disponibilizar abrigo, alimentos, água, vestuários, aos afetados pelo ciclone Ana”, destaca o moçambicano Pedro Manjate.
Worrying scenes from #malawi where #CycloneAna has swept several areas damaging some roads and disrupting electricity supply #ClimateCrisis pic.twitter.com/AM4YdA3nC4
— Sarah Kumvana Amani (@S_Amani) January 25, 2022
“Cenas preocupantes de #malawi onde #CycloneAna varreu várias áreas danificando algumas estradas e interrompendo o fornecimento de eletricidade #ClimateCrisis”
De acordo com Diosmar Filho, doutorando em Geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da IYALETA – Pesquisa, Ciência e Humanidades, o aquecimento das águas do oceano devido às mudanças climáticas se ligam diretamente à frequência que os fenômenos climáticos tem se repetido não só no continente africano, mas em outros países, como o Brasil.
“O que está sendo estudado é que esses são eventos resultantes das mudanças climáticas. Se a gente parte de uma realidade sobre meteorologia e acompanhamento do que está acontecendo no Sul global em matéria de ciclones, se chega à constatação de que os eventos estão se repetindo frequentemente e não estão em uma temporalidade que era a cada 30 anos”, explica.
Em 2019, os ciclones Idai e Kenneth atingiram Moçambique e mataram centenas de pessoas, afetando mais de 2,5 milhões, além de causarem graves destruições. Entre 2016 e 2021, o país passou por dois eventos de seca e oito tempestades tropicais.
De acordo com o geógrafo Diosmar Filho, por conta da falta de temporalidade que as mudanças climáticas dão para os eventos extremos, fica difícil as pessoas se prepararem para eles, ainda mais lidando com desigualdades profundas e escassez de estrutura de monitoramento.
Cobertura midiática de África recai nos estereótipos
Diante de eventos como o ciclone Ana e do fenômeno climático, chamado Batsirai, que pode vir a ocorrer nos próximos dias na mesma região do Sul da África, percebe-se a diferença de cobertura midiática que ocorre na agenda internacional de notícias.
O geógrafo Diosmar Filho pontua a falta de investimentos e de movimentação para auxiliar as regiões africanas afetadas, inclusive como há mudanças na forma de cobertura das notícias, ao contrário do que acontece quando eventos de tal magnitude ocorrem em países do norte, como na Europa.
“O que a gente está vendo é como isso é propagado. Se algo acontecer nessa magnitude na região norte, a cobertura [de notícias] muda, isso é logo associado a perdas econômicas e como isso tem o impacto das mudanças climáticas. É uma narrativa toda econômica para responder a questão das mudanças climáticas”, destaca Diosmar.
Alexandre dos Santos, jornalista e professor de África no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), salienta que o continente africano só é assunto na imprensa nacional em termos negativos muito motivado também pela própria forma de se fazer jornalismo, que é baseado em noticiar fatos que fogem do comum e do dia a dia.
“Os países do continente africano só aparecem na imprensa brasileira quando há um golpe de Estado, um atentado terrorista, quando acontece desastres naturais como o ciclone Ana, quando há uma informação de que são o menor percentual de pessoas vacinadas. Mas também existe uma responsabilidade muito grande de todos os veículos de comunicação que é de abrir espaço para a notícia que não seja ruim. A gente precisa ter um certo balanceamento. Quando o noticiário é de fatos internacionais, a gente não faz esse esforço”, explica o professor.
De acordo com Alexandre dos Santos, quando se trata de países da Europa e Estados Unidos uma exceção pode até ser aberta para reportar notícias além das factuais negativas, mas o mesmo não acontece com o continente africano, que fica muito preso também a um noticiário repassado por agências internacionais que se concentram muito mais em fatos negativos.
“A gente esquece de procurar isso no continente africano também e dar visibilidade. Lá no continente, tem muitas lideranças sociais e ambientais, muitos empreendedores fazendo a diferença. Não tem só golpe de Estado, têm governos tentando mudar as estruturas internas para tentar crescer financeiramente, países que dão apoio à equidade de gênero e que se abrem para investimentos de outros países além de China, Estados Unidos e União Europeia”, pontua.
Diosmar Filho reforça que o fato da mídia brasileira cobrir África muito pelas agências internacionais, que são corporações européias e estadunidenses, é falar sobre o continente africano muito a partir do olhar dessas outras nações.
“A linguagem da mídia brasileira é coberta ou pela Europa ou pelos Estados Unidos. É uma linguagem de colônia. A mídia brasileira não tem um olhar sobre a África, não tem correspondente no continente africano”, aponta o geógrafo.
De acordo com Diosmar, o continente vira agenda na mídia da mesma forma que a mídia brasileira cuida da agenda da população negra no Brasil. “Mesmo nesse momento que parece que estão cobrindo o que a gente queria, estão cobrindo de uma forma massacrante de se colocar a população negra de uma maneira de não ter potência de assumir um protagonismo, assim como o continente africano. Para o Brasil, é importante a cobertura de um continente que não dá certo. É preciso que o continente africano seja narrado na decadência”, finaliza.