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A culpa não é da natureza

[Fonte: Artigo publicado originalmente na Revista Piauí | Autoria de Victor Carvalho Pinto]


Tragédias como a de Petrópolis estão associadas à ocupação de áreas de risco – tolerada e incentivada pela sociedade

A aviação é o meio de transporte mais seguro que existe. Isso não se deve a nenhuma característica técnica, mas à existência de um sistema de investigação disciplinado internacionalmente, que tem por objetivo identificar todos os fatores que possam ter contribuído para cada acidente e recomendar medidas para a prevenção de futuros acidentes. Se na aviação as quedas são investigadas com rigor, quando falamos de desastres urbanos – enchentes, deslizamentos de terra etc. – não temos no Brasil qualquer ação específica relacionada à identificação de responsabilidades ou de medidas que possam ser tomadas para a prevenção de futuras tragédias. Ao contrário, em geral há todo um esforço de reconstrução com o propósito de recompor a situação exatamente como ela se encontrava antes do desastre.

Tragédias como as que ocorreram este ano na Bahia, no Espírito Santo e esta semana em Petrópolis são recorrentes. Ainda estão na memória coletiva os deslizamentos na Região Serrana do Rio de Janeiro, em 2011, e no Morro do Bumba, em Niterói, em 2010, com centenas de mortes. São desastres que decorrem, em sua maioria, do ciclo natural da água – ensinado às crianças no ensino fundamental e mapeado com grande precisão pelos órgãos públicos municipais e estaduais. Por esse motivo, ao contrário dos acidentes aeronáuticos, geralmente provocados por fatores imprevisíveis, os desastres urbanos são previsíveis, tanto no espaço quanto no tempo.

As cidades costumam se formar nas proximidades da água – de um rio, por exemplo. Ocorre que os rios têm um ciclo que acompanha a variação das chuvas durante o ano. Consequentemente, há uma faixa de terra ao longo deles – a “várzea” – que alterna períodos de seca e alagamento. Se essas áreas forem ocupadas, as casas nelas construídas serão, claro, periodicamente alagadas. Não há drenagem que impeça isso de ocorrer. A única coisa a ser feita é impedir a ocupação de tais espaços.

Se o alagamento das várzeas é um fenômeno natural, o deslizamento de terras decorre da intervenção humana sobre o ambiente. A supressão da vegetação para a edificação de casas em morros íngremes gera erosão e instabilidade do solo, acentuados pelas chuvas. Os deslizamentos resultantes podem vitimar não apenas os moradores daquelas residências como também as pessoas que vivem nas áreas mais baixas.

A erosão também gera sedimentos que são carregados pelas chuvas para o leito dos rios, assoreando-os, ou seja, tornando-os mais rasos. Além disso, a impermeabilização do solo, decorrente da pavimentação do sistema viário e dos lotes privados, acelera o fluxo da água da chuva, sobrecarregando as redes de drenagem e aumentando o volume que chega aos rios. A convergência desses dois fenômenos faz com que os alagamentos se expandam para além da várzea original dos rios.

Numa escala mais planetária, supõe-se que as mudanças climáticas causadas pelo acúmulo de gases do efeito estufa na atmosfera estejam alterando o próprio regime hídrico, gerando secas em algumas regiões e chuvas mais intensas em outras.

Tudo isso é amplamente conhecido – e a legislação brasileira contempla medidas adequadas a respeito.

O Código Florestal define como “área de preservação permanente” as faixas marginais aos cursos d’água e as encostas com declividade superior a 45o. Elas preservam os recursos hídricos, protegem o solo e asseguram o bem-estar das populações humanas. A Lei de Parcelamento do Solo Urbano proíbe a urbanização de terrenos alagadiços e sujeitos a inundações. A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil prevê o mapeamento das áreas de risco, a fiscalização de sua ocupação, a intervenção preventiva e a evacuação da população nelas residente, que deverá ser imediatamente acolhida em abrigos provisórios e cadastrada para atendimento habitacional definitivo. Todo município com áreas de risco deve elaborar uma carta geotécnica, que orientará a elaboração do plano diretor e a aprovação de projetos de loteamento. O Estatuto da Cidade exige que os planos diretores mapeiem as áreas de risco, planejem as ações preventivas, inclusive com realocação da população, se necessário, e adotem medidas de drenagem aptas a prevenir desastres e mitigar seus impactos.

Ora, se a legislação proíbe a ocupação de áreas de risco, por que não é aplicada? Há casos em que se aprovam empreendimentos em violação clara da lei. Na maior parte dos casos, entretanto, a ocupação de áreas de risco se dá pela formação de assentamentos informais, como favelas e loteamentos clandestinos.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que existiam em 2019 – é o último dado divulgado – nada menos do que 5,13 milhões de domicílios ocupados em 13.151 “aglomerados subnormais”, distribuídos em 734 municípios. Isso corresponde a 7,8% dos domicílios do país. Os estados com maior proporção de domicílios em aglomerados subnormais são Amazonas, com 34,59%, e Espírito Santo, com 26,10%. Em alguns municípios, a informalidade supera os 50% e, portanto, passou a ser regra e não exceção: 74% em Vitória do Jari (AP); 68,93% em Viana (ES); 61,21% em Marituba (PA); 61,07% em Cariacica (ES); 55,49% em Belém (PA); 53,51% em Ananindeua (PA); 53,38% em Manaus (AM).

A regularização de assentamentos informais é possível, mas não necessária. Existe uma legislação específica para isso desde 2009, atualizada em 2017. Não se trata simplesmente de distribuir títulos de propriedade para os ocupantes. É preciso um diagnóstico prévio de cada situação, que indicará a possibilidade ou não de regularização, o meio de equacionamento da ilegalidade fundiária e a responsabilidade pela execução das obras. Em seguida, deve ser elaborado um projeto urbanístico, que identificará as unidades a serem relocadas, para abertura de espaços públicos, passagem de dutos e ampliação de sistema viário. Só então poderá esse projeto ser levado a registro – e os moradores, titulados. Assentamentos em áreas de risco só podem ser regularizados se for possível eliminar o risco, por meio de obras de engenharia. Do contrário, devem ser desconstituídos.

Diversos fatores contribuem para a informalidade urbanística. A baixa renda de grande parte da população limita suas possibilidades de pagar por um aluguel no mercado formal. Não se deve, entretanto, imaginar que todo assentamento informal tenha como ocupantes pessoas de baixa renda. Há inclusive condomínios de alta renda construídos à margem da lei. Também é preciso entender que, mesmo nas áreas de baixa renda, grande parte dos moradores paga aluguel ou comprou o terreno de alguém, que pode ser outro ocupante ou algum grileiro de terras, agindo isoladamente ou como membro de uma organização criminosa.

Contribuem para o encarecimento dos aluguéis regras de zoneamento que restringem indevidamente a oferta de unidades habitacionais. Entre elas, recuos obrigatórios desnecessários, exigências de vagas de garagem e segregação rígida de usos, dificultando a conversão de imóveis comerciais em residenciais. A isso tudo soma-se uma política de moradia mal direcionada, que constrói conjuntos habitacionais distantes, sem infraestrutura ou mobilidade e exclusivamente residenciais, nos quais muitos beneficiários não querem morar, preferindo vender ou abandonar suas unidades.

Por fim, é preciso também mencionar os incentivos perversos gerados pela regulação de serviços públicos, que obrigam as concessionárias de energia elétrica e saneamento básico a instalar redes de infraestrutura em todo e qualquer assentamento delas carentes, independentemente de sua legalidade, impacto ambiental ou localização em área de risco. A responsabilidade dessas concessionárias e seus órgãos reguladores é grande, pois, mesmo em situação de pobreza, a maioria das pessoas não ocuparia uma área de risco que não tivesse acesso a água e energia elétrica. A tolerância com as ligações clandestinas é igualmente nociva e se explica, em alguma medida, pela política tarifária instituída pelas agências reguladoras, que distribui parte desse prejuízo entre todos os usuários, mediante aumento de tarifas.

Se todos esses fatores geram a informalidade enquanto fenômeno geral, é preciso investigar, em cada desastre específico, aqueles que contribuíram para as tragédias. A ocupação era regular ou irregular? Recente ou consolidada? Qual era a renda dos moradores? A ocupação era própria ou os moradores pagavam aluguel? O local estava mapeado como área de risco? Se estava, o que foi feito a respeito? A população foi informada do perigo? Existiam ligações de energia e água? Essas ligações eram regulares ou clandestinas? As concessionárias consultaram a prefeitura sobre a conveniência e a oportunidade de fornecer esses serviços? Havia algum procedimento de regularização fundiária em curso? Em caso positivo, já se tinha um projeto urbanístico aprovado? Essas são questões que a imprensa, por exemplo, ao cobrir as tragédias urbanas, pode ajudar a responder.

Não existe no Brasil um órgão incumbido da investigação de desastres urbanos na perspectiva da prevenção de novos acidentes, a exemplo do que ocorre no caso de acidentes aeronáuticos. Tanto a União quanto os estados e municípios podem criar órgãos desse tipo. Na sua ausência, o Ministério Público pode instituir inquéritos civis com tal finalidade, com o apoio de instituições acadêmicas, como o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Diante da tragédias que se repetem, a melhor homenagem que se pode fazer às vítimas é entender todos os fatores que contribuíram para a sua ocorrência – com o intuito de responsabilizar os culpados e adotar medidas capazes de evitar novos desastres.

 

Victor Carvalho Pinto

Coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e doutor em Direito Econômico e Financeiro